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Resenha

11/05/2020 11:34:57

“Nós temos sorte de ainda estarmos vivos!”

 

Nicole Soares-Pinto (UFES)

 

Resenha de BANIWA, André Fernando. Bem viver e viver bem: segundo o povo Baniwa no noroeste amazônico brasileiro. João Jackson Bezerra Vianna, Aline Fonseca lubel (orgs.).  Curitiba: Ed. UFPR, 2019. 64p.

 


“[N]ós temos sorte de ainda estarmos vivos para continuar a luta” (p. 19). Aqui resta uma das mais contundentes frases que pude ler nos últimos anos, e em relação à qual temo ainda não saber como proceder. Depois de enfrentar epidemias para as quais não possuíam defesas, os Baniwa foram invadidos, deslocados e escravizados pelos colonizadores na terra brasilis. Portanto, essa frase encerra um sentido particular e localizado. Mas faz mais, muito mais do que isso. Se pode ser aplicada à história da maioria dos povos indígenas no Brasil, estaríamos – os não indígenas – agora habilitados, ao menos, a entendê-la? A identificação com a história indígena era tão insuspeita que alguns de nós diríamos inexistente ou impossível, mas poucos são os que hoje, em 2020, em meio a uma pandemia, conseguem sustentar tal desconexão sem maiores problemas ou constrangimentos. “Nós temos sorte de ainda estarmos vivos [...]”. O sentido da frase se estende e se multiplica, o sujeito se desloca, embora mantenha seu ponto de inflexão.

A ameaça, destruição e reconstrução dos modos próprios de vida e bem viver marca a obra de André Fernando Baniwa transversalmente. André escreveu esse livro e somente depois do manuscrito pronto procurou pelos organizadores. Nisso, creio, repousa boa parte das particularidades inventivas com as quais somos agraciados, fonte de deslumbramentos e de desconcertos para o leitor. No transcorrer do livro, percebemo-nos, os não indígenas, tanto deslumbrados pela profunda dessemelhança que os elementos do pensamento de André se nos apresentam quanto desconcertados pela ressonância que a organização desses elementos estabelece com a nossa epistemologia. Entre a profunda diferença metafísica que nos arrebata e a familiaridade com que seu pensamento nos alcança, resta-nos meditar sobre a natureza e a excepcionalidade dessa obra que conjuga acuidade histórica, conhecimento milenar e pragmatismo político. André não é pajé e nem exatamente um filósofo indígena: a força de sua escrita reside, em meu humilde entendimento, na resiliência, habilidade, experiência e inteligência estratégica de uma grande liderança indígena, e do profundo conhecimento dos alicerces de seu mundo.

O livro conta com uma apresentação feita pelo autor, nove curtos capítulos, um posfácio escrito pelos organizadores João Vianna e Aline Iubel e uma minibiografia de André ao final.  Seu objeto são os conceitos de bem viver e viver bem em acordo com a história de relações e com a sociocosmologia baniwa. Recupera a memória das inúmeras destruições causadas por não indígenas, costura-a com resistência e reconstruções empreendidas por seu povo face à destruição, e fornece um panorama programático para o conjunto das comunidades baniwa. Os conceitos de bem viver e viver bem são submetidos a uma série de escrutínios ao longo do livro, que foi escrito sobretudo para seus parentes e, portanto, distinto de boa parte da literatura conduzida por intelectuais indígenas contemporâneos. Contudo, um leitor não indígena, caso seja capaz de cultivar um lugar de atenção e escuta, não se favorecerá menos.  Certamente não ao molde de uma receita ou de um modelo a ser copiado, mas de uma visão, imagem ou diálogo capaz de o tornar autodiferente.

 “[T]rabalhar duro, pesado, gastando nosso suor todos os dias a fim de obtermos nossa comida, o que é fundamental para o ser humano ter condições para se cuidar e promover o seu bem viver” (p. 8): quantos de nós ainda somos capazes disso? A quantos essa capacidade não seria tão rara quanto necessária? Ou quando lemos: “[S]empre foi preciso defender a terra porque eles [os não indígenas] sempre procuraram tomá-la” (p. 7), em que momento esquecemos que essa é a real e mais contundente marcação de nossa história?

Para quem poderia pensar que as noções de bem viver e viver bem fornecem uma imagem inocente da relação com os não indígenas, encontraria dificuldades em transpor as questões que André apresenta, como a seguinte: “[c]om a Constituição Federal de 1988, restavam apenas menos da metade [...] daquelas etnias e das línguas que eram faladas. Para onde foram? Viajaram para outros países? Não! Foram exterminados, mortos pelos homens brancos que continuam matando até hoje no Brasil” (p. 17). Portanto, se por um lado, o autor não se furta à denúncia das relações com não indígenas, por outro lado, tampouco recai em ideias de um coletivismo indígena exótico e passivo: “por que parece que estamos sempre divididos e uns contra os outros? O que é que pode nos reunir [...]? Quais são nossos pontos fortes e quais são nossas fraquezas diante de um mundo tão complexo?” (p. 11). Logo se vê que o pensamento de André não se deixa enfeitiçar por nenhuma imagem da unidade que conjura as contradições, expulsa as discordâncias, elege e aniquila inimigos. Atrelada a esta capacidade está a disposição em não se afetar pela alternativa infernal entre o coletivismo e o individualismo que marca(ou) boa parte das análises etnológicas. É quase como se não pudéssemos mais nos esconder da capacidade de alguns líderes e intelectuais indígenas em pôr em suspensão essas dualidades profundamente inverossímeis, ainda que altamente edificadoras das percepções não indígenas sobre povos indígenas.

A transposição de tais alternativas é realizada pelo autor por meio do reconhecimento da complexidade do mundo, da fragilidade e inventividade embutidas no fazer diário. Em todo o livro depreende-se o cuidado e a atenção na produção da malha da vida, com atributos referentes a quem não é concedido pensar os seres como estando à sua mera disposição ou o mundo como palco para suas disposições: basta olhar a seção Bem Viver e Viver bem na prática, que contém, em língua baniwa e em língua portuguesa, os diferentes exercícios, conselhos e práticas que devem ser levados a cabo pelas pessoas baniwa.

“Ainda existimos, somos muitos e estamos perplexos, enfrentando dificuldades no entendimento do nosso direito intercultural” (p. 14). Em que pesem as indicações sobre as dificuldades baniwa em lidar com o “direito”, e seu direito a ter direitos, tais dificuldades não são menores, nem da mesma ordem, do lado do Estado, afirma André. E o leitor ficará ainda assombrado pela equipolência demoníaca entre Estado, Capitalismo e Igreja, que só mesmo um pensador indígena poderia oferecer:

O Estado brasileiro é a organização formal dos colonizadores na terra conquistada, que reúne seu povo sob um mesmo nome, uma nação. O capitalismo é uma maneira de consumir e destruir outras formas de vida na Terra, é uma vida diferente da dos povos indígenas. Igrejas são instituições das religiões para condenar as culturas e tradições milenares dos povos indígenas. Todas estas instituições são dos colonizadores, [...] (p. 15)

Desconcertando até mesmo os mais sensíveis e combativos apoiadores, essa equação é mais facilmente contestada do que realmente levada a sério por intelectuais não indígenas. Há mesmo quem o diga: “veja bem, etc.”, mas André não concede uma vírgula sequer nem à exposição dos fatos nem à posição exclusiva de vítima, e é impossível não admitir que os Baniwa tomam para si a total responsabilidade na condução de suas vidas, seu bem-estar e seu território. “Nós, Baniwa, sempre lutamos pela nossa existência.” (p. 18). Parte dessa habilidade de responder (response-ability, no dizer de Donna Haraway) ao Outro, mesmo quando esse é ameaçador, parece-me repousar na manutenção inexorável do “fora” pelas metafísicas indígenas: a manutenção da diferença frente àquilo que eles definitivamente não são. O livro de André nos ensina sua maneira de fazer isso, i.e., como ao mesmo tempo se diferenciar e estabelecer alianças, oferecendo uma imagem muito refinada e sutil da diferença constitutiva e inesgotável (porque continuamente construída) entre mundos que, não obstante, co-existem. 

Aliás, é essa co-existência que fornece a matriz para todas as reflexões do livro, desde a origem do termo bem viver nas sociocosmologias de outros povos latino-americanos, até a diferenciação entre não indígenas parceiros e não indígenas colonizadores. Não obstante esses constituírem diferentes “foras” aos Baniwa, é ainda desconcertante saber que tanto as noções de bem viver quanto a existência dos brancos são referidas ao começo do mundo, dispostas por seu “nascimento” na cachoeira de Hipana, “o umbigo do mundo, onde tudo começou e onde tudo irá terminar” (p. 15). Como somos deixados saber logo nas primeiras frases do livro, “todas as coisas já existiam, já estavam aqui prontinhas” (p. 7). Entre a mitologia e a história, a sociologia e a cosmologia, a vida milenar e a contemporânea, o profetismo e o associativismo, o início e o fim do mundo, o pensamento de André fornece antes passagens que muros de contenção, antes transformações complexas que simples oposições, antes relações imanentes que hierarquias transcendentes.

Em formulações que encapsulam o passado, o presente e o futuro e explicitamente os desordenam, temos a impressão de estarmos ouvindo menos ecos de um lugar distante que de um futuro próximo, ou de qualquer futuro possível. À medida que as construções (invenções e reinvenções) não indígenas se realizam sob a forma da destruição de vidas humanas e não humanas, o livro de André é um exemplo tanto conceitual quanto pragmático de formas altamente resilientes de agir, conhecer e cuidar da vida e de vidas, no plural, num mundo profundamente ameaçado. A capacidade de prosseguir é, não obstante, remetida ao passado e à função de não esquecimento: “conhecemos bem a origem da humanidade, sabemos da sua complexidade, do futuro da terra, que somos nós mesmos” (p. 13). Com cuidado e coragem, o autor fornece rotas de sobrevivência futura. Quiçá poderemos nos valer, mas somente se admitirmos a profunda e fundamental importância dos povos e modos indígenas em qualquer futuro que possamos reivindicar. Isso também equivale a prestar contas do passado. Temos sorte de estarmos vivos e podermos ler as palavras baniwa de André Fernando!  Seremos capazes?

 

 

 

 

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