“Nós temos sorte
de ainda estarmos vivos!”
Nicole
Soares-Pinto (UFES)
Resenha de BANIWA,
André Fernando. Bem viver e viver bem: segundo o povo Baniwa no noroeste
amazônico brasileiro. João Jackson Bezerra Vianna, Aline Fonseca lubel (orgs.).
Curitiba: Ed. UFPR, 2019. 64p.
“[N]ós temos
sorte de ainda estarmos vivos para continuar a luta” (p. 19). Aqui resta uma
das mais contundentes frases que pude ler nos últimos anos, e em relação à qual
temo ainda não saber como proceder. Depois de enfrentar epidemias para as quais
não possuíam defesas, os Baniwa foram invadidos, deslocados e escravizados
pelos colonizadores na terra brasilis. Portanto, essa frase encerra um
sentido particular e localizado. Mas faz mais, muito mais do que isso. Se pode
ser aplicada à história da maioria dos povos indígenas no Brasil, estaríamos –
os não indígenas – agora habilitados, ao menos, a entendê-la? A identificação
com a história indígena era tão insuspeita que alguns de nós diríamos
inexistente ou impossível, mas poucos são os que hoje, em 2020, em meio a uma pandemia,
conseguem sustentar tal desconexão sem maiores problemas ou constrangimentos.
“Nós temos sorte de ainda estarmos vivos [...]”. O sentido da frase se estende
e se multiplica, o sujeito se desloca, embora mantenha seu ponto de inflexão.
A ameaça, destruição e reconstrução dos modos próprios de vida e bem viver
marca a obra de André Fernando Baniwa transversalmente. André escreveu esse
livro e somente depois do manuscrito pronto procurou pelos organizadores. Nisso,
creio, repousa boa parte das particularidades inventivas com as quais somos
agraciados, fonte de deslumbramentos e de desconcertos para o leitor. No
transcorrer do livro, percebemo-nos, os não indígenas, tanto deslumbrados pela
profunda dessemelhança que os elementos do pensamento de André se nos
apresentam quanto desconcertados pela ressonância que a organização desses
elementos estabelece com a nossa epistemologia. Entre a profunda diferença
metafísica que nos arrebata e a familiaridade com que seu pensamento nos
alcança, resta-nos meditar sobre a natureza e a excepcionalidade dessa obra que
conjuga acuidade histórica, conhecimento milenar e pragmatismo político. André não
é pajé e nem exatamente um filósofo indígena: a força de sua escrita reside, em
meu humilde entendimento, na resiliência, habilidade, experiência e
inteligência estratégica de uma grande liderança indígena, e do profundo
conhecimento dos alicerces de seu mundo.
O livro conta com uma apresentação feita pelo autor, nove curtos
capítulos, um posfácio escrito pelos organizadores João Vianna e Aline Iubel e
uma minibiografia de André ao final. Seu
objeto são os conceitos de bem viver e viver bem em acordo com a
história de relações e com a sociocosmologia baniwa. Recupera a memória das
inúmeras destruições causadas por não indígenas, costura-a com resistência e
reconstruções empreendidas por seu povo face à destruição, e fornece um
panorama programático para o conjunto das comunidades baniwa. Os conceitos de bem
viver e viver bem são submetidos a uma série de escrutínios ao longo
do livro, que foi escrito sobretudo para seus parentes e, portanto, distinto de
boa parte da literatura conduzida por intelectuais indígenas contemporâneos.
Contudo, um leitor não indígena, caso seja capaz de cultivar um lugar de
atenção e escuta, não se favorecerá menos.
Certamente não ao molde de uma receita ou de um modelo a ser copiado,
mas de uma visão, imagem ou diálogo capaz de o tornar autodiferente.
“[T]rabalhar duro, pesado,
gastando nosso suor todos os dias a fim de obtermos nossa comida, o que é
fundamental para o ser humano ter condições para se cuidar e promover o seu bem viver” (p. 8): quantos de nós ainda
somos capazes disso? A quantos essa capacidade não seria tão rara quanto
necessária? Ou quando lemos: “[S]empre foi preciso defender a terra porque eles
[os não indígenas] sempre procuraram tomá-la” (p. 7), em que momento esquecemos
que essa é a real e mais contundente marcação de nossa história?
Para quem poderia pensar que as noções de bem viver e viver bem
fornecem uma imagem inocente da relação com os não indígenas, encontraria
dificuldades em transpor as questões que André apresenta, como a seguinte: “[c]om
a Constituição Federal de 1988, restavam apenas menos da metade [...] daquelas
etnias e das línguas que eram faladas. Para onde foram? Viajaram para outros
países? Não! Foram exterminados, mortos pelos homens brancos que continuam
matando até hoje no Brasil” (p. 17). Portanto, se por um lado, o autor não se
furta à denúncia das relações com não indígenas, por outro lado, tampouco recai
em ideias de um coletivismo indígena exótico e passivo: “por que parece que
estamos sempre divididos e uns contra os outros? O que é que pode nos reunir [...]?
Quais são nossos pontos fortes e quais são nossas fraquezas diante de um mundo
tão complexo?” (p. 11). Logo se vê que o pensamento de André não se deixa
enfeitiçar por nenhuma imagem da unidade que conjura as contradições, expulsa
as discordâncias, elege e aniquila inimigos. Atrelada a esta capacidade está a
disposição em não se afetar pela alternativa infernal entre o coletivismo e o
individualismo que marca(ou) boa parte das análises etnológicas. É quase como
se não pudéssemos mais nos esconder da capacidade de alguns líderes e
intelectuais indígenas em pôr em suspensão essas dualidades profundamente
inverossímeis, ainda que altamente edificadoras das percepções não indígenas
sobre povos indígenas.
A transposição de tais alternativas é realizada pelo autor por meio do
reconhecimento da complexidade do mundo, da fragilidade e inventividade
embutidas no fazer diário. Em todo o livro depreende-se o cuidado e a atenção na
produção da malha da vida, com atributos referentes a quem não é concedido
pensar os seres como estando à sua mera disposição ou o mundo como palco para
suas disposições: basta olhar a seção Bem Viver e Viver bem na prática,
que contém, em língua baniwa e em língua portuguesa, os diferentes exercícios,
conselhos e práticas que devem ser levados a cabo pelas pessoas baniwa.
“Ainda existimos, somos muitos e estamos perplexos, enfrentando
dificuldades no entendimento do nosso direito intercultural” (p. 14). Em que
pesem as indicações sobre as dificuldades baniwa em lidar com o “direito”, e
seu direito a ter direitos, tais dificuldades não são menores, nem da mesma
ordem, do lado do Estado, afirma André. E o leitor ficará ainda assombrado pela
equipolência demoníaca entre Estado, Capitalismo e Igreja, que só mesmo um
pensador indígena poderia oferecer:
O Estado brasileiro é a organização
formal dos colonizadores na terra conquistada, que reúne seu povo sob um mesmo
nome, uma nação. O capitalismo é uma maneira de consumir e destruir outras formas
de vida na Terra, é uma vida diferente da dos povos indígenas. Igrejas são
instituições das religiões para condenar as culturas e tradições milenares dos
povos indígenas. Todas estas instituições são dos colonizadores, [...] (p. 15)
Desconcertando
até mesmo os mais sensíveis e combativos apoiadores, essa equação é mais
facilmente contestada do que realmente levada a sério por intelectuais não
indígenas. Há mesmo quem o diga: “veja bem, etc.”, mas André não concede uma
vírgula sequer nem à exposição dos fatos nem à posição exclusiva de vítima, e é
impossível não admitir que os Baniwa tomam para si a total responsabilidade na condução
de suas vidas, seu bem-estar e seu território. “Nós, Baniwa, sempre lutamos pela
nossa existência.” (p. 18). Parte dessa habilidade de responder (response-ability, no dizer de Donna
Haraway) ao Outro, mesmo quando esse é ameaçador, parece-me repousar na
manutenção inexorável do “fora” pelas metafísicas indígenas: a manutenção da
diferença frente àquilo que eles definitivamente não são. O livro de André nos
ensina sua maneira de fazer isso, i.e., como ao mesmo tempo se diferenciar e
estabelecer alianças, oferecendo uma imagem muito refinada e sutil da diferença
constitutiva e inesgotável (porque continuamente construída) entre mundos que,
não obstante, co-existem.
Aliás, é essa co-existência que fornece a matriz para todas as reflexões
do livro, desde a origem do termo bem viver nas sociocosmologias de
outros povos latino-americanos, até a diferenciação entre não indígenas
parceiros e não indígenas colonizadores. Não obstante esses constituírem
diferentes “foras” aos Baniwa, é ainda desconcertante saber que tanto as noções
de bem viver quanto a existência dos brancos são referidas ao começo do
mundo, dispostas por seu “nascimento” na cachoeira de Hipana, “o umbigo do
mundo, onde tudo começou e onde tudo irá terminar” (p. 15). Como somos deixados
saber logo nas primeiras frases do livro, “todas as coisas já existiam, já
estavam aqui prontinhas” (p. 7). Entre a mitologia e a história, a sociologia e
a cosmologia, a vida milenar e a contemporânea, o profetismo e o
associativismo, o início e o fim do mundo, o pensamento de André fornece antes
passagens que muros de contenção, antes transformações complexas que simples
oposições, antes relações imanentes que hierarquias transcendentes.
Em formulações que encapsulam o passado, o presente e o futuro e
explicitamente os desordenam, temos a impressão de estarmos ouvindo menos ecos
de um lugar distante que de um futuro próximo, ou de qualquer futuro possível.
À medida que as construções (invenções e reinvenções) não indígenas se realizam
sob a forma da destruição de vidas humanas e não humanas, o livro de André é um
exemplo tanto conceitual quanto pragmático de formas altamente resilientes de
agir, conhecer e cuidar da vida e de vidas, no plural, num mundo profundamente
ameaçado. A capacidade de prosseguir é, não obstante, remetida ao passado e à
função de não esquecimento: “conhecemos bem a origem da humanidade, sabemos da
sua complexidade, do futuro da terra, que somos nós mesmos” (p. 13). Com
cuidado e coragem, o autor fornece rotas de sobrevivência futura. Quiçá
poderemos nos valer, mas somente se admitirmos a profunda e fundamental
importância dos povos e modos indígenas em qualquer futuro que possamos
reivindicar. Isso também equivale a prestar contas do passado. Temos sorte de
estarmos vivos e podermos ler as palavras baniwa de André Fernando! Seremos capazes?
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