O filósofo Immanuel Kant está num navio que o leva em direção aos Estados Unidos, onde fará uma operação de catarata com os melhores cirurgiões do mundo, professores da Universidade de Colúmbia. Acompanhado pela esposa, pelo secretário Ernesto Ludovico e pelo papagaio Frederico, o intelectual está no centro da sociedade que o mundo contemporâneo forjou e que o microcosmo claustrofóbico da embarcação reproduz de maneira mordaz: representantes da Igreja e do Estado bebem champanhe com exemplares da grande burguesia, enquanto os motores do barco pifam e o papagaio, que repete frases feitas e termos-chave, só pode mesmo ser considerado o melhor aluno daquele iluminista morto em 1804.
Essa travessia põe a figura que dá título a esta peça num lugar não apenas isolado no espaço, mas também embaralhado no tempo — um telegrama, invenção de meados do século XIX, chega ao navio com uma mensagem para o protagonista; alguém menciona o naufrágio do Titanic, de 1912. Tal recurso narrativo, que deslocaliza e confunde, reforça que quem está ali não é, afinal, o autor histórico de Crítica da razão pura, eterno morador de Königsberg e nunca casado, mas uma representação hilariante dos monstros canhestros que conceitos como razão e verdade, na sua vigília implacável, podem criar. Assim, um Kant tratado ao mesmo tempo como fisicamente inválido e rei nababesco é a figura perfeita de um universo que também ele precisa ser levado urgentemente ao hospital sob pena de perder toda a visão.
Mantendo todas as qualidades que o tornaram um dos maiores escritores em língua alemã, o austríaco Thomas Bernhard confirma nesta dramaturgia, que estreou em 1978 com direção de Claus Peymann, a crítica feroz aos fundamentos de tudo aquilo que tem sustentado a soberba ocidental. A tradução, trabalho excepcional de Angélica Neri e Hugo Simões, com organização de Ruth Bohunovsky, traz consigo o exagero, o absurdo e toda a potência de uma obra de complexidade e pertinência ímpares.